No verão de 2025 o governo português relançou com novo ímpeto um velho tema relacionado com a gestão da mudança em grandes sistemas humanos: a reforma do Estado e da Administração Pública.
O desafio da mudança na Administração Pública
Qualquer “reforma” num grande ecossistema como todas as organizações da esfera do Estado e da Administração Pública provoca, de forma natural, diferentes resistências, que decorrem da forma como as mudanças afetam o dia a dia de todos os que são por elas afetados, as suas “zonas de risco e de conforto”, o seu poder, os seus incentivos… etc.
Por vezes, levantam-se barreiras que decorrem das próprias condições colocadas por alguns stakeholders, ou mesmo pelas expetativas que são criadas por quem lidera a mudança: não é possível reduzir funcionários… (apesar da enorme otimização e digitalização de processos que se preconiza)… não é possível alterar ou fundir estruturas (isso vai ser demasiado disruptivo e perturbador)… não é possível colocar as pessoas a trabalhar por objetivos a serem efetivamente responsabilizadas pelos sucessos e pelos fracassos pois essa cultura não existe… enfim… por vezes parece que só é possível fazer uma coisa:
– Nada!
Fatores Críticos de Sucesso para a Mudança
Efetivamente, a gestão de um processo de mudança num grande sistema humano, com um passado e uma cultura esmagadores em determinadas direções, como a Administração Pública, é uma tarefa ao nível de mais um dos trabalhos de Hércules.
Mas mesmo sem o herói da mitologia grega, semelhante tarefa pode ser levada a cabo com sucesso, desde que tenhamos em conta alguns princípios fundamentais de gestão da mudança.
Vamos começar pelas crenças que normalmente não resultam perante esta enorme e hercúlea tarefa:
- Acreditar que a mudança é desejada por todos, e por isso a colaboração vai existir.
Não! A maioria das pessoas têm medo da mudança, e prefere que as coisas fiquem como estão. Quem nunca foi efetivamente responsabilizado por resultados, bons e maus, do seu trabalho, prefere agora responder pela concretização de objetivos? Quem perde o controlo, pela via da digitalização, de tarefas que eram por si executadas com autonomia anteriormente quer perder esse poder? A reposta é tão óbvia como parece: não!
- Acreditar que é possível melhorar processos, eliminar redundâncias e responsabilizar as pessoas por objetivos de resultado, sem alterar as estruturas, em termos de número de pessoas e de cargos dirigentes.
Esta crença é semelhante a acreditar que posso comer o dobro do que como atualmente, ter o mesmo nível de atividade e não engordar. Não vai acontecer, pois é matemático… entram mais calorias, saem as mesmas… a gordura vai aumentar.
Assumir que mudamos processos e sistemas e não reduzimos pessoas, é assumir desde logo das duas uma: ou não otimizamos e digitalizamos verdadeiramente esses processos, pois deixamos novas ineficiências pelo caminho, ou então baixamos ainda mais a produtividade das pessoas, pois mantemos o efetivo não porque ele seja necessário, mas porque criamos a expetativa de que esse efetivo se iria manter, independentemente do valor acrescentado de cada colaborador.
Convém notar que a otimização de processos na esfera pública poderá ser uma oportunidade de transferir muitos funcionários para o setor privado, que tem efetiva carência de mão de obra qualificada.
Adicionalmente, e dentro ou entre as próprias estruturas públicas, existem inúmeras possibilidades de otimização de estruturas através de transferência ou realocação de recursos humanos com determinadas qualificações, retirando-os de estruturas ou funções de baixo valor acrescentado ou mesmo redundantes para outras estruturas ou funções nas quais conseguem gerar mais valor.
- Acreditar que a mudança de grandes sistemas humanos é rápida, ou compatível com um único ciclo político.
Não há nada mais lento e difícil de mudar numa grande organização do que a sua cultura. Quanto mais num conjunto de organizações de grandes dimensões, como o Estado e a Administração Pública.
A resistência à mudança é a regra, não a exceção. Só uma ação com propósito estratégico e um fio condutor coerente no tempo (certamente mais de 10 anos), poderá produzir resultados. E isso é difícil de conciliar com ciclos políticos temporais de legislaturas de 4 anos ou bem menos, como tem sido a prática em Portugal.
Mas neste enquadramento, quais os fatores críticos de sucesso de uma reforma bem sucedida do Estado e da Administração Pública, focando agora naquilo que diz respeito à gestão dos recursos humanos que integram essas múltiplas e complexas estruturas?
A resposta é sem dúvida complexa, mas possível.
Visão, Mérito e Resultados
De entre os múltiplos fatores que fazem a diferença numa mudança sistémica de um conjunto alargado de organizações, podemos destacar dois: a visão da mudança e a coragem de quem lidera a sua implementação.
Começando pela visão, um dos maiores desafios de mudar qualquer coisa no Estado ou na Administração Pública reside na dificuldade em ter uma visão sistémica e integrada dessa mudança.
A “manta de retalhos” que decorre dos inúmeros modelos de carreiras e remunerações, por exemplo, faz com que seja muito difícil definir uma perspetiva única e agregadora desses múltiplos sistemas – o que serve para os Professores não se aplica o Médicos, que por sua vez não se articula de forma coerente com os técnicos do Ministério das Finanças, que não tem nada a ver com as regras da gestão dos dirigentes e técnicos de qualquer outra estrutura governamental.
A definição de uma visão agregadora, aplicável a todos e capaz de orientar as múltiplas mudanças que são necessárias é a primeira condição para o sucesso de semelhante mudança.
Isso mesmo foi compreendido por um governo igualmente reformista de um dos países da CPLP com maior maturidade democrática, Cabo Verde.
Percebendo que só criando modelos comuns e integradores que sirvam de referência a todas as carreiras e funções do Estado e da Administração Pública, o governo de Cabo Verde começou por construir um novo alicerce no qual todas as mudanças iriam assentar, tendo publicado em 2023 uma nova “Lei de Bases do Emprego Público” (Lei nº 20/X/2023, de 24 de março), onde inseriu, num só parágrafo, uma definição da sua visão da mudança a empreender:
“O presente diploma consubstancia uma nova visão para a gestão integrada dos recursos humanos da Administração Pública cabo-verdiana que assenta num princípio-chave e estruturante: A gestão dos recursos humanos da Administração Pública deve assegurar que cada funcionário possui um perfil ajustado à sua função, conheça o seu conteúdo funcional, o trabalho que deve efetuar e para que resultados dá o seu contributo, tanto para o aumento da sua responsabilidade como para a sua remuneração em reconhecimento do seu mérito enquanto servidor do Estado” .
Esta definição da visão, ou situação desejada após o processo de gestão da mudança, encerra 3 “ingredientes” de sucesso que vale a pena descodificar rapidamente:
- Visão sistémica: sendo o Estado o owner das suas múltiplas estruturas, incluindo as de administração direta, indireta, institutos públicos ou até autarquias locais, só modelos sistémicos que consigam compreender toda esta diversidade de uma forma integrada e coerente terão alguma possibilidade de sucesso. Vemos isto, por exemplo, através de introdução de um mecanismo de avaliação de funções no desenho das múltiplas carreiras, que permite comparar funções tão diversas como Professores, Médicos, Enfermeiros ou Juízes, e “arrumar” de forma coerente esta diversidade numa tabela única de remunerações, por exemplo.
- Meritocracia: esta é a palavra-chave da gestão da mudança no Estado e na Administração Pública, como aliás em qualquer organização que sirva adequadamente os interesses e necessidades dos seus clientes, utentes ou beneficiários. Significa que existe igualdade de oportunidades quanto às possibilidades de evolução, mas não existe igualdade de consequências perante bons e maus desempenhos, por referência a critérios muito razoavelmente objetivos e consensuais (resultados alcançados e atividades realizadas). Fazer bem ou mal faz diferença.
- Foco em objetivos de resultado: esta é uma profunda mudança organizacional (obriga necessariamente à introdução de rotinas de planeamento e avaliação de objetivos), que gera enorme resistência nas organizações públicas (e em muitas privadas). Qual a principal objeção? “Isso não depende de mim…” ou “fiz a minha parte, mas “eles” (colegas de outra equipa, departamento ou mesmo os restantes colegas da própria equipa) não fizeram a sua parte…”. Apenas uma cultura de responsabilidade e empowerment permite ultrapassar esta resistência.
Mas para que a reforma do Estado e da Administração Pública aconteça, não basta ter uma visão coerente das mudanças que se pretendem operar.
A coragem como fator decisivo
Uma atitude predominante de quem lidera com sucesso processos de mudança organizacional e que faz toda a diferença em qualquer transformação de processos e culturas é a coragem!
Simples e direto. É isso mesmo!
Qualquer processo de gestão da mudança em grandes sistemas humanos implica que alguém lidere essa mudança: um Governo, uma Agência, um Conselho de Administração… enfim, líderes que impulsionam as múltiplas mudanças integradas que são necessárias, mas que, acima de tudo, vença a resistência à mudança de todos aqueles que tentam que nada mude, ou que pelo menos não mude o status quo fundamental para manter as suas zonas de conforto.
Liderar uma grande transformação e gerir mudança implica fazer escolhas, e tomar decisões difíceis e muitas vezes “remar contra muitas marés”.
Porque é tão importante ter uma visão clara da mudança?
Porque é essa visão que encerra em si os princípios orientadores dos quais não se pode desistir nessa mudança, porque esses princípios são valores inegociáveis.
Se acreditarmos que a meritocracia e a responsabilização por resultados são melhores do que uma evolução por antiguidade e a ausência de accountability, então não podemos abandonar estes princípios/valores orientadores apenas porque dentro de um grande sistema – os próprios dirigentes e funcionários públicos – e na sua periferia – como comentadores e especialistas dos media – muitos levantam a sua voz contra essas mudanças. Ou pior, concordam com esses princípios, mas depois boicotam-nos das mais diversas maneiras.
Voltando ao exemplo do plano de transformar a gestão de recursos humanos na Administração Pública de Cabo Verde, em cerca de 3 anos, foram produzidos os mais diversos instrumentos que podem operar semelhante transformação, com destaque para o Sistema de Gestão de Desempenho (que introduziu a avaliação de objetivos e atividades na Administração Pública) ou o PCFR (Plano de Carreiras, Funções e Remunerações) que no ano passado definiu os princípios de gestão aplicáveis a todas as carreiras do regime geral da Administração Pública, e que serve agora como guia de orientação para as múltiplas carreiras dos regimes especiais.
Mas como em todos os bons exemplos de capacidade de gestão da mudança num país como um todo, podemos desde já vislumbrar nuvens e possíveis ventos fortes contrários a essa mudança no horizonte, e que decorre do efeito paralisador e vezes destruidor dos processos de mudança, e que se chama proximidade de eleições legislativas (já no próximo ano).
Mais do que nunca, a coragem será a competência determinante daqueles que derem continuidade a estas mudanças, bastando para tal acreditar que é importante ter uma visão integrada e coerente da mudança, que a meritocracia compensa ou que a responsabilidade deve predominar sobre a desresponsabilização.
Independentemente do rumo que esta mudança irá ter nos próximos anos em Cabo Verde, vale a pena, aqui em Portugal, refletir sobre algumas lições que daqui possamos retirar, agora que estamos perante uma das mais nobres tarefas de que Hercules se poderia ocupar: tornar a vida de todos nós, cidadãos, melhor, quer para a nossa geração, quer para as dos nossos filhos e netos!
Artur Nunes
HUMANPERSI
Managing Partner